Nayara Ferreira Marques da Silva.
Advogada no Furriela Advogados.
Dias de descanso regulamentados pela legislação brasileira.
A legislação trabalhista brasileira reconhece a importância do descanso para a saúde e bem-estar dos trabalhadores, garantindo um conjunto de direitos relacionados a dias de descanso semanal, férias e feriados.
Contudo, a regulamentação dos dias de descanso culturais e religiosos não cristãos ainda é um desafio necessário de ser enfrentado, levando em conta a diversidade cultural e religiosa do nosso país em contraponto com o instituído pela legislação.
Em regra, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) veda o trabalho em domingos e feriados nacionais e religiosos – art. 70, CLT.
Coube à Lei 605/49 garantir que o repouso aos domingos e feriados seria remunerado e, ao fazê-lo tratou do descanso em feriados civis e religiosos de acordo com a tradição local.
O fato é que a legislação, amparada no que seria a tradição local, apenas garante a remuneração e repouso, de forma concomitante, aos feriados civis e religiosos previstos em lei, que atualmente são os seguintes nacionalmente:
- Civis:
- 1º de janeiro (Lei 662/49);
- 21 de abril (Lei 1.266/50);
- 1º de maio (Lei 662/49),
- 7 de setembro (Lei 662/49),
- 15 de novembro (Lei 662/49),
- dia de eleição geral no país (art. 360, Le9 4.737/65 e art. 77 CRFB),
- data magna do Estado prevista em lei estadual específica,
- datas de início e término do centenário do município, de acordo com a legislação local.
- Religiosos
- 12 de outubro (Nossa Senhora Aparecida, Lei 6.802/80);
- Sexta-feira da paixão (incluído no rol de no máximo quatro feriados religiosos declarados por lei municipal – Lei 9.093/95)
- 2 de novembro (Finados, Lei 10.607/2022);
- 25 de dezembro (Natal, Lei 662/49).
Acima restam destacados apenas os feriados nacionais. Contudo é possível notar que, apesar de a Lei garantir que os feriados civis e religiosos sejam fixados de acordo com a cultura local, as datas comemorativas elencadas possuem todas relação com a cultura cristã, ainda que o Brasil seja um país tão diverso em termos de cultura e religião.
O próprio domingo como dia destinado ao descanso teve origem na cultura cristã, por ser considerado como o dia destinado à descida do Espírito Santo sobre os apóstolos, como ensina Vólia Bomfim (Direito do Trabalho, 19ª Ed. Método, 2022, pag. 707):
“O direito ao descanso semanal no sétimo dia teve sua origem entre os Hebreus, que costumavam descansar aos sábados, porque a Escritura Sagrada pregava que Deus descansou ao sétimo dia, após criar o mundo. Mais tarde, o direito ao descanso semanal passou a fazer parte do Decálogo de Moisés, e, como domingo era o dia destinado à descida do Espírito Santo sobre os apóstolos, o descanso passou a recair aos domingos.”
Neste panorama, como lidar com questões como a sacralidade do sábado para os adventistas, do Yom Kippur (Dia do Perdão) para os judeus, o Ramadã dos muçulmanos ou mesmo o dia 2 de fevereiro destinado à Iemanjá pelos umbandistas, se tais dias não são considerados feriado e dias de repouso remunerado pela legislação brasileira? O trabalhador teria direito de não comparecer sem que fosse descontado o dia de seu salário?
O questionamento é deveras relevante, pois só no Brasil, por exemplo, existem entra 800 mil e 1,5 milhão de muçulmanos segundo pesquisa da Federação das Associações Muçulmanas no Brasil (FAMBRAS)[1]. O número vem crescendo não só pela migração, mas pela conversão de brasileiros, fato que representa uma manifestação contemporânea, em que renovações culturais e contextos socioculturais transmutam a ideia de culturas e religiões que antes eram herdadas e agora são escolhidas[2].
Além do Ramadã, há outros desafios para empregados muçulmanos que trabalham em empresas brasileiras, a exemplo do tempo para realização do salat, que são as orações diárias, feitas em cinco momentos do dia. Há o fajr (pelo menos 15 minutos antes do sol nascer), dhuhr (feita quando o sol atinge o ponto mais alto no céu, por volta do meio dia), asr (durante a tarde, antes do por do sol, por volta das 15h39), maghrib (por volta de 18h15) e isha (por volta de 19h26).
Vera Lúcia Maia Marques, na dissertação de mestrado intitulada “Conversão ao Islam: o olhar brasileiro, a construção de novas identidades e o retorno à tradição“[3] entrevistou novos convertidos para entender as consequências da conversão em diversas áreas da vida, dentre elas a laboral. Neste sentido, convém destacar o seguinte trecho, que ressalta a dificuldade tratada neste artigo:
Outra questão relacionada ao trabalho são os horários das orações. Embora a maioria do grupo tenha admitido não ser esse o maior problema dentro do emprego, admitem que juntar orações como forma de compensar a oração não realizada não é o ideal, pois as mesmas devem sempre ser feitas nos horários previstos no Corão.
” Eu trabalho só 4 horas … e eu junto duas e duas (orações), eu faço as da manhã, e agora estou trabalhando à tarde, da pra fazer às da manhã e do meio dia, a da tarde eu não faço eu venho fazer em casa junto com a do por do sol… mas eu descobri na Sunnah que Deus adora quando o devoto reza no horário certinho …” (mulher, 50 anos, convertida há 2 anos).
“É bom cumprir os horários certos… mas se não tem jeito fico dentro dos horários. Quando tem cliente e a hora passa, pode rezar (depois) mas fico com tristeza no coração porque o horário já se foi.” 113 (mulher, 28 anos, convertida há 8 anos).
No Brasil, como não há regulamentação para as pausas, a jurisprudência tende a considerá-las, quando concedidas, como tempo à disposição do empregador e de remuneração obrigatória, a exemplo do que se extrai de julgado proferido pelo Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-4 – RO: 00008603920115040661 RS 0000860-39.2011.5.04.0661, Relator: MARIA HELENA LISOT, Data de Julgamento: 24/04/2013, Origem: 1ª Vara do Trabalho de Passo Fundo).
Neste contexto, a falta de regulamentação faz com que as pausas sejam concedidas como uma liberalidade pelo empregador. Não há uma obrigação para além do previsto em lei, o que vale para os dias de guarda.
Entendemos, porém, que a concessão das referidas benesses é uma forma de privilegiar o exercício da diversidade cultural e religiosa no ambiente do trabalho, bem como o sentido comunitário de feriados culturais e religiosos. Daí porque seria possível ao empregador adotar política interna para promoção da diversidade através do abono de ausências, pausas, mesmo não havendo obrigatoriedade legal para tanto.
Neste aspecto não podemos esquecer que quando falamos em direitos culturais e exercício da liberdade religiosa estamos tratando de direitos humanos, ancorados na dignidade da pessoa humana, premissa antropológica-cultural do Estado Constitucional (SARLET & NETO, 2020)[4].
Assim, promover a diversidade cultural e religiosa no ambiente de trabalho é também uma forma de resguardar direitos humanos.
[1] https://www.fambras.org.br/
[2] https://journals.openedition.org/etnografica/777
[3] Mestrado em ciências Sociais. PUC SP. Disponível em: <https://tede.pucsp.br/bitstream/handle/4009/1/tese_66193.pdf>.Acesso em 23.03.2023.
[4] Wolfgang Sarlet, I., & Weingartner Neto, J. (2020). Constituição, religião, feriados e racismo. Revista De Direitos E Garantias Fundamentais, 21(1). https://doi.org/10.18759/rdgf.v21i1.1803. Disponível em: < https://sisbib.emnuvens.com.br/direitosegarantias/article/view/1803/542>